Sexta-feira, 15 de Julho de 2011

 

A leveza e a determinação com que Assunção Esteves entra no hemiciclo é consistente com o seu lema de vida. Mulher de fortes convicções, espírito livre e independente, adepta fervorosa do federalismo europeu. É, aos 54 anos, presidente da Assembleia da República - e fica duplamente para a História: é a primeira mulher a assumir tão elevado cargo e já tinha sido a primeira juíza do Tribunal Constitucional.

Reúne consensos em todos as alas políticas, da esquerda à direita. Acredita em Deus, defendeu o ‘sim' no referendo sobre a interrupção da gravidez e encara a sua missão como uma espécie de sacerdócio. "A política é uma coisa boa e as pessoas estão à espera que isto resulte. Esperamos todos. As coisas mais bonitas que fiz na minha vida foram na política", diz à Domingo.

Transmontana de gema

Em criança, nas ruas de Valpaços (Trás-os-Montes), saltava à corda e jogava à macaca; e em casa, à noite, tantas vezes o pai acordava, via uma luz acesa, e era a "Mariazinha" a estudar. Mas brincadeiras não faltavam. À hora da refeição, as três irmãs escondiam-se: o pai sentava-se à mesa, sentia um toque nas pernas e encontrava uma delas escondida ali debaixo. Atrás da porta estava outra e mais uma debaixo da cama.

"Quando me casei disse à minha esposa que iríamos formar todos os filhos que tivéssemos. Mas quando nasceram as minhas [três] filhas, fiquei decepcionado porque era apaixonado pela política e, naquela altura, as raparigas tinham alguma dificuldade em seguir a política e ir para a universidade", conta Manuel Esteves, pai da segunda figura do Estado português. "A minha filha [Maria Assunção Esteves] alcançou aquilo que eu sonhei para elas".

Filha do alfaiate Manuel António Esteves, hoje com 85 anos, e de Maria Efigénia de Sousa Andrade, 89, Maria da Assunção Andrade Esteves nasceu a 15 de Outubro de 1956 numa casa pequena na rua Heróis do Ultramar, em Valpaços.

Para lá do Marão ficaram também as raízes de outros contemporâneos de Assunção Esteves. Um jovem de cabelo comprido, chapéu de aba larga, camisa de flanela e calças boca--de-sino, ‘Zé Manel' (José Manuel Durão Barroso), o presidente da Comissão Europeia, que aos 18 anos entra para o curso de Direito, ao mesmo tempo que nasce para a política com a alcunha de ‘Veiga', inspirada na aldeia transmontana de Veiga de Lila, terra da família paterna. O avô foi monárquico, exilado no Brasil com a República, e nomeado por Salazar presidente da Câmara de Valpaços. Como diria Miguel Torga, no "Reino Maravilhoso" (Trás-os-Montes) passaram ainda a infância ‘Zézito' (José Sócrates, anterior primeiro-ministro) e ‘Pedrinho' (Pedro Passos Coelho, actual primeiro-ministro): o primeiro por vezes vestia-se de rei nas festas de Vilar de Maçada, Alijó; o segundo brincava aos soldados em Vale de Nogueiras, Vila Real.

A política é comum a todos eles. Maria Assunção foi levada para o PSD pela mão do pai, um dos três fundadores da sede do partido em Valpaços. "Sempre que Sá Carneiro ia a Chaves, logo a seguir ao 25 de Abril, nós íamos também", conta o pai, referindo-se a ele, à mulher e às três filhas, três Marias - em homenagem à avó paterna. Maria Assunção Esteves, ainda adolescente e militante da JSD, "preparou um discurso para o líder do então PPD/PSD. Foi até a primeira pessoa a falar" - prossegue o pai. "Depois do jantar, ele discursou e disse que tinha sido preciso ir a Chaves para ouvir as palavras de uma jovem a quem nem a beleza faltava". O discurso mereceu-lhe o elogio de Sá Carneiro que lhe vaticinou sucesso: "A Assunção ainda vai dar que falar". Mais tarde, voltou a elogiar-lhe a coragem de ter votado sozinha contra uma RGA (Reunião Geral de Alunos), numa faculdade que fervia à esquerda. "O poder de um voto único tem outro peso", disse.

Estudante com convicções

Inspirada pela política, a jovem trocou a pacata Valpaços pela agitada Lisboa, onde estudou Direito na Universidade Clássica. Naquele tempo, entre 76 a 80, o meio universitário era de grande mobilização. "A liberdade, a sensibilidade política era transversal a todos os que, como nós, chegámos à idade adulta no período pós-25 de Abril. Era o período de transição, entre a agitação que existiu imediatamente a seguir à revolução e a estabilização, no sentido da normalidade", lembra o socialista António Vitorino, que a acompanhou durante os anos de faculdade, quando ali também estudavam Durão Barroso, Santana Lopes e Celeste Cardona. "A Assunção distinguia-se porque sempre foi do mesmo partido. Numa altura em que era grande a polarização política, pois a faculdade tinha sido dominada pelo MRPP, ela era reconhecida e referenciada exactamente por ser do PSD", diz Vitorino, que elogia o espírito livre da antiga colega. "Ela mantém o sotaque transmontano, que lhe dá muita graça, porque é uma pessoa muito natural. É o que os ingleses definem como uma ‘outspoken', diz tudo o que pensa".

No quadro de honra

Desde os primeiros anos de escola - no Lar Amor de Deus, em Valpaços, cuja mensalidade custava 500 escudos (hoje, com o valor da inflação, equivalente a 160 euros) - que Assunção Esteves tinha "o dom da palavra", descreve o então professor Manuel Cerqueira da Mota, 76 anos. "Era das melhores alunas que tive e o engraçado é que eu era de ciências e ela seguiu letras. Era excelente garota, educadíssima, boa comunicadora, sempre muito viva, alegre. E excepcionalmente inteligente".

O nome de Assunção estava sempre no quadro de honra da escola, conta Adelaide Oliveira, um ano mais nova. Também Leonardo Batista, autarca do PSD no concelho, recorda-a: "destacava-se na escola pela sua inteligência. Era uma miúda bonita, elegante".

Junto ao jardim da terra onde Assunção nasceu, e que chegou a ter 30 mil habitantes - população reduzida hoje a perto de 17 mil - mantém-se o cabeleireiro onde ela ia desde pequena. Izilda Mimoso, 70 anos, é cabeleireira numa sala da sua própria casa. "Antigamente os cortes eram curtinhos, mais funcionais. As pessoas não andavam tanto nas cabeleireiras", recorda, enquanto coloca rolos no cabelo de uma cliente. "Ela chegou a fazer um corte à ‘Malvina' [personagem da telenovela ‘Gabriela'], mais desbastado atrás. E recordo-me também que sempre foi mais loirinha do que as irmãs. Agora se calhar pinta o cabelo. Ela usa um penteado curto porque é uma moça prática, lava o cabelo e pronto".

Vida nova na capital

Quando Assunção Esteves se mudou para a capital, morava com uma das irmãs na avenida Almirante Reis. O quarteirão junto à praça do Areeiro está agora quase despovoado, mas ainda há quem recorde a jovem estudante de Direito, então com penteado à Lady Di. "Lembro-me perfeitamente de a ver passar na rua. Era alta e muito simpática, tinha sempre um ar sorridente", diz Maria Almeida, 48 anos, uma antiga vizinha.

Assunção Esteves vivia "numa casa de família", por onde passaram as três irmãs. Tomava café na pastelaria S. João, na avenida de Paris, na mesma rua onde visitava o engenheiro Febrer, antigo administrador da CUF, e amigo dos Esteves . "Eram umas raparigas muito pacatas, boas estudantes, moravam no mesmo prédio onde vivia uma pianista da Gulbenkian. Depois fomos acompanhando o seu percurso na televisão", diz um dos moradores, com perto de 80 anos.

"Fiquei emocionada ao saber que se lembram de mim", confessou a presidente da Assembleia da República. "Gostei muito de viver ali, era uma zona movimentada, mas ao mesmo tempo familiar, acolhedora, com uma certa elite lisboeta. Tenho muito boas recordações, fiquei mesmo comovida", diz a jurista que deixa marca por onde passa.

Em Valpaços também poucos ficaram surpreendidos com a nomeação de Assunção Esteves, que, por ali, prefere não ser tratada por ‘doutora'. Eduardo Barreira, 62 anos, antigo empregado da alfaiataria do pai, é quem assegura hoje a manutenção do prédio - três andares, que já teve um pronto-a-vestir, alfaiataria e casa de habitação com quatro quartos, construído há pouco mais de 40 anos. Cuida também dos cinco hectares de terreno que cultiva para seu próprio proveito (até que as propriedades sejam vendidas). Os pais da presidente da Assembleia da República deixaram a terra há 12 anos - pouco depois de Manuel Esteves ter sido operado à vesícula - e desde há seis que lá não voltam. Mudaram-se para Olhão, perto de onde vive a filha mais velha, Maria Efigénia (57 anos), conservadora no registo predial. A mais nova, Maria Madalena, de 52, é médica no IPO, em Lisboa.

Outro ex-empregado da alfaiataria, Aires Martiniano, 63 anos, conta que o pai de Assunção Esteves deu uma "educação extrema" às filhas mas, das três, "só ‘Mariazinha' podia estar na política. Ela sempre foi mais expansiva. Manifestava-se. Não foi por acaso que, aos 17 anos, já entrava em comícios". Qualidades às quais outro ex-empregado do pai, José Borges, 57 anos, acrescenta: "Ela era muito amiga de todos. A mim ajudou-me muito porque eu andava no 5º ano à noite e ela, que era muito inteligente, dava-me explicações de Português e de Matemática". Para compensar, José, que tem uma pastelaria entre a casa da família Esteves e a igreja, é quem dá a Assunção o melhor pequeno-almoço na cidade. "Na altura das vacas loucas, deixou de comer pastéis de carne. Antes de sair de Lisboa a caminho de Valpaços, ligava-me a pedir pastéis de galinha".

O casamento

A vida em Lisboa nunca mudou a senhora presidente. Exigente com os próprios conhecimentos, a jovem licenciada em Direito somou ao currículo um semestre de Ética, com a professora Cristina Beckert, do curso de Letras, e estudou alemão no Goethe Institut "para poder citar a seriedade do discurso no Direito", conta Assunção, que também fala fluentemente francês e inglês e "arranha" espanhol e italiano, graças ao ouvido treinado nas aulas de latim do secundário.

Briosa na carreira e no estudo - fez um doutoramento sobre o tema do direito à resistência e foi bolseira na Alemanha - todo o seu percurso é profundamente marcado pelo espírito da academia. Na faculdade fez amigos para a vida. Foi lá que conheceu José Lamego, ex-dirigente socialista com quem esteve casada 15 anos, e que à Domingo se limitou a remeter para as palavras que disse no hemiciclo: "É uma excelente escolha". O casal nunca teve filhos. Foi também na faculdade que a nova presidente do Parlamento ganhou o fervor constitucionalista, quando os "dois bons alunos", Assunção e António Vitorino, foram convidados para assistentes do professor Jorge Miranda, na cadeira de Direito Constitucional.

Deputada com Cavaco

Em 1987, na primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, Assunção Esteves foi eleita deputada pelo círculo de Vila Real e as intervenções da menina doce com fortes convicções foram ganhando forma. Passados dois anos reencontra o socialista António Vitorino: "Fizemos a revisão constitucional e, nesse ano, fomos os dois eleitos para o Tribunal Constitucional pela Assembleia da República".

O nome de Assunção Esteves ganha fama ao tornar-se a primeira mulher juíza do Tribunal Constitucional. Tinha apenas 33 anos. "Não foi escolhida por ser mulher, mas por mérito pessoal", afirma Luís Marques Mendes, ex-líder do PSD. "Nessa altura já tinha provado que é uma pessoa de grande talento, com bom percurso académico e de trabalho jurídico. Foi natural a sua chegada".

A "qualidade, espírito de abertura e capacidade de diálogo com todas as forças políticas" são características da actual presidente da Assembleia da República, que se distinguiram também no Parlamento Europeu, onde esteve de 2004 a 2009. Marques Mendes sublinha que "o consenso e prestígio da Assunção Esteves vai além do universo laranja. É uma capacidade que ela tem".

Crente num "futuro de grandes estados federados", Assunção Esteves não deixou indiferente o Parlamento Europeu. Levou para Estrasburgo um gosto pela literatura, que estendeu a outros deputados, e uma "atitude serena mas com um grau de persistência assinalável", explica Miguel Portas, eurodeputado pelo Bloco de Esquerda. Indiferente a cores políticas, a actual presidente da Assembleia marcava encontros com os parlamentares ora na livraria Kléber, uma das suas preferidas na cidade francesa, ora nos debates a favor do federalismo. "É uma divergência de opinião que tenho com ela e cheguei a fazer humor com a sua persistência. Dizia na brincadeira que não sabia se ela acreditava mais na Bíblia ou na constituição europeia. Mas dentro da família social-democrata ela sempre foi uma mulher de fortes convicções. Em matéria de costumes e comportamentos, de liberdades cívicas e de liberdade de imprensa", frisa Miguel Portas, "sempre disse o que pensava, mesmo que fosse dissonante do seu grupo parlamentar".

Mulher de fé, Assunção Esteves evocou a "alegria cristã" no discurso de tomada de posse. Dedicou o momento "a todas as mulheres, às mulheres políticas, que trazem para o espaço público o calor da entrega e a matriz do amor, mas, sobretudo, às mulheres anónimas e oprimidas". E prometeu fazer "de cada dia um esforço para a redenção histórica da sua circunstância".

O sonho do pai

Manuel Esteves nunca falou com a filha a propósito da sua nomeação. "O que havia de dizer um pai? Não tinha palavras para me exprimir. Quando a minha filha foi tão ovacionada na Assembleia da República ainda me emocionei por ver um sonho meu realizado", confessa.

A confiança no "ser humano como factor de mudança" é uma característica da 12ª presidente da Assembleia da República, garante Luís Campos Ferreira, do PSD, que estava a seu lado quando Assunção Esteves ouviu o resultado da votação - 186 votos a favor, depois da desistência de Fernando Nobre. Nesse momento sentiu, como sente sempre que está com a companheira de partido, "uma atmosfera positiva e de enorme liberdade. Há pessoas que nos põem constrangidos, que carregam o peso das instituições, mas a Assunção, pelo contrário, é livre e gosta de fazer profundas reflexões sobre todos os assuntos, mantendo sempre a sua convicção pessoal".

O deputado, que cimentou a proximidade com Assunção Esteves em 2002 quando esta presidiu à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, acredita que as intervenções da nova presidente serão marcadas pela "liberdade de pensamento. É uma mulher descomplexada, seja em questões sociais ou de outra natureza, com uma aproximação muito filosófica ao Direito".

Sobre a sua eleição e o peso que o destino lhe deitou em mãos, Assunção Esteves resume numa frase: "Sei que a vida não me exigirá mais do que eu puder dar".

A jurista que lê filosofia e tem forte veia literária

A paixão pelas letras vem dos bancos da escola primária. Foi cimentada ao sabor do percurso de vida de Assunção Esteves e colmatada numa amizade recente com Eduardo Lourenço, que considera "o maior pensador português". Sem nunca ter perdido a verve, apesar de amarrada a um rígido curso de Direito - Marcelo Rebelo de Sousa, que foi seu professor, elogia a "fluidez do discurso, quer oral, quer escrito" -, a presidente da Assembleia da República tem na literatura um porto de abrigo. "Aproximei-me do alemão para melhor entender a seriedade do Direito, mas a língua também me aproximou da literatura. Hoje consigo ler Kafka e Kant sem tradução", conta. "Fiquei comovida quando, no dia após a minha eleição, a Pilar, viúva do Prémio Nobel, me enviou o livro ‘As Palavras de Saramago', e, na página 287, estava o texto que eu escrevi para um jornal aquando da sua morte", revela Assunção Esteves, que também escreve "umas coisas". Conta o pai da presidente que quando ela estudava no Lar Amor de Deus, em Valpaços - que frequentou até ao 5.º ano - escreveu uma redacção sobre a avó paterna, que foi bastante elogiada por um dos padres: "Uma pessoa lê aquela redacção e é como se estivesse a ver a avó", recorda Manuel Esteves. É a veia literária.

 



publicado por AJREIS às 20:44
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